18.4.07

Uma vida inteira

Tenho pena. Tenho mesmo. E ela também, essa rapariga que um dia saiu de casa, por qualquer motivo, faltava pão ou fruta ou era para despejar o lixo ou coisa assim que o valha, coisa breve, rápida, num vou ali e já volto, diz ela, saí de casa e foi mesmo só por uns minutos (mas se calhar nem saiu, vai-se a ver e esteve sempre lá, quem sabe) e nesse momento ele, esse ele que ali poisava, sentado distraído a ver notícias ou coisas afins, a ler jornais ou um capítulo de um livro, nesse preciso momento em que ela não estava ali mesmo ao lado, deu-lhe uma coisa, assim um zimbróglio estupefactante agudo e, sem mais nem quê, um pré-aviso de 15 dias, uma carta registada com aviso de recepção, um telegrama, um sms até, nada, assim num trau que lhe caiu em cima (e a ela também) apaixonou-se. Apaixonou-se mesmo, paixão de caixão à cova, de triplos mortais encarpados que começou a dar no sofá, com as folhas dos jornais a voarem à volta, concordes supersónicos de papel, a televisão em mira técnica de espanto, os livros abertos nas páginas treze e ele perdidamente apaixonado, naqueles minutos em que o mundo é todo nosso e nada nem ninguém nos impedirá de lhe dar três voltas a pé se for preciso, para chegar onde se quer. Apaixonou-se, o homem, esse ele que até aí estivera lá poisado e ela, sem saber de nada, nesse momento a receber o troco da nota com que pagara o pão ou a fruta, o lixo já despejado e a voltar devagarinho para casa, para o homem poisado entre o jornal e a televisão, o homem apesar de tudo dela, que as mulheres, as esperas e os xailes roxos de viúvas à beira do pontão são sempre coisas que se coadunam bem em histórias de amor (e esta, não parecendo, também não deixa de o ser). Não sabemos (nem eu nem ela nem mais ninguém que tenha assistido sem saber) o que terá acontecido exactamente, apenas umas folhas amarfanhadas no caixote dos papéis a reciclar que por mero acaso se encontraram depois e que pareciam mesmo aviões supersónicos em termo de viagem última, deram alguma indicação vaga. Ela lembra-se de demorar tempo a voltar, sem pressa na espera, que os homens que são nossos e que poisam vagamente nas costas das cadeiras e nas beiras das mesas e nas guardas das varandas, não deixam de ser nossos mas não é preciso ir a correr, que as mulheres e as esperas sempre se deram bem, desde que as últimas não sejam vãs e que eles, esses homens que nos poisam, voem, quer para longe quer para perto, que precisam disso, mas que voltem sempre à terceira chamada para a mesa, quando a sopa ainda está quente embora já não fumegue. Ela voltou lentamente para casa, até porque lhe teria parecido ao sair que o homem dela precisaria de algum tempo (e sossego) para ler o jornal em paz; sem adivinhar que nesse preciso momento já ele quebrava recordes de saltos para a água e de apneias em terra, da falta do ar respirado por ela.
É assim a coisa no espaço dos segundos que passam ao largo das ruas que ainda se estão a atravessar. Quando ela meteu a chave à porta já ele, o homem poisado, se tinha sacudido num acordar quase em horror, eu? eu? um quase sonho, quase pesadelo, quase escapadela à justa, um correr atrás de aviões, agora pesados, a tombarem pela sala toda, a juntar tudo no lixo, a esvaziar a água toda, a esfregona a limpar a piscina olímpica já outra vez com dois sofás grandes e uma mesa no meio e um tapete por baixo, ainda um pouco molhado, entornei aqui água, querida, estou a limpar e nunca ela se deu conta, ou se deu, encolheu os ombros e embrulhou-se no seu xaile roxo e voltou para a cozinha com o pão ainda quente e as maçãs vermelhas e disse-lhe apenas, daqui a dez minutos está a sopa pronta, não vás para muito longe.
E eu tenho pena, nem é tanto por ela que, se sabe, fez que não soube e espera ainda que um dia os guardanapos de papel levantem voo com as pás das hélices a rodar; mais por ele, que não se conseguiu aguentar.

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